Se pai e filho agredidos por homófobos tivessem se 'confessado' gays, em vez de uma orelha decepada poderiam haver dois cadáveres!
Debora Diniz - O Estado de S.Paulo
Minhas visitas à Índia são recheadas de descobertas culturais. Uma das que mais me fascina é a cena de homens de mãos dadas nas ruas. Ao contrário de nós, a expressão pública de afeto entre amigos é socialmente autorizada. Assim como meninas escolares no Brasil, os indianos de qualquer idade andam abraçados com seus colegas. A mesma intimidade entre homens, vi em vários países de tradição árabe. Aos homens, é permitido o toque como sinal de amizade. O curioso é que esse traço cultural não elimina a homofobia. Ao contrário, a homofobia é uma prática de ódio que convive com essas redescrições culturais sobre o corpo e o encontro entre os sexos. Entre nós, a novidade parece ser a de que nem mesmo o afeto entre pais e filhos será permitido pela patrulha homofóbica.
Um pai de 42 anos e um filho de 18 se abraçaram. De madrugada, cantavam juntos em uma festa ao ar livre no interior de São Paulo. Consigo imaginá-los felizes, razão para demonstrarem afeto mútuo. Foi o sinal para que dois homens desconhecidos perguntassem se eram gays. Insatisfeitos com a resposta negativa, saíram em busca de outros homens para iniciar a agressão. O pai teve parte da orelha decepada e o filho teve ferimentos leves. Pai e filho têm medo de represálias, pois os agressores estão pelo mundo, talvez orgulhosos da façanha ou, quem sabe, ainda sem entender por que não se pode agredir gays. Se tiverem algum senso de vergonha pelo ato, talvez seja o de ter confundido homens heterossexuais com gays.
A violência foi praticada com um ritual de confissão em dois atos: no primeiro, pai e filho deveriam declarar suas práticas sexuais para homens desconhecidos. Os homens homofóbicos são os inquisidores da heteronormatividade. Pai e filho negaram ser gays. Por alguma razão, a performance de gênero do pai e do filho não convenceu o grupo de homófobos. Eles buscaram reforço e retornaram com mais homens para silenciar aqueles que imaginavam ser representantes dos fora da lei heterossexual. No segundo ato, foram exigidas demonstrações de práticas homossexuais: pai e filho deveriam se beijar na boca para que os agressores vivenciassem a fantasia gay.
O primeiro ato do ritual homofóbico me leva a imaginar quais teriam sido as consequências de um "sim, somos gays" - uma autoafirmação entranhada em dois homens que não suportassem mais o tribunal homofóbico. Com essa resposta, talvez não estivéssemos diante de uma imagem de uma orelha parcialmente decepada, mas de dois cadáveres. Pai e filho foram vítimas da violência homofóbica. O curioso é que os dois não se apresentam como gays, mas como representantes da ordem heterossexual. Para os vigias homofóbicos, não importavam as práticas sexuais dos dois homens, mas a manutenção da ordem pública em que homens não devem se tocar. O interdito homossexual é tão poderoso que deveria impedir, inclusive, o contato físico entre pais e filhos.
Há outro ponto intrigante nessa história que é sobre como os homófobos se formam. Essa é uma inquietação a que qualquer aspirante a sociólogo responderia com uma tautologia: os fenômenos sociais não têm causa única. Mas aqui quero arriscar um caminho de compreensão. Os homófobos deste caso foram incapazes de diferenciar uma expressão de carinho paterno de uma prática erótica entre dois homens. Como hipótese, especularia que os agressores pouco receberam afeto de homens, seja de seus pais ou de outros homens de suas redes afetivas. Uma hipótese alternativa é a de que, se houve afeto paterno, esse foi mediado pelo temor homofóbico. Essa ausência levou os agressores a desconfiar do corpo de outros homens. Ao primeiro sinal de aproximação física, a defesa é a repulsa homofóbica.
Sei que essa explicação pode parecer reducionista para um fenômeno tão complexo e dependente da cultura patriarcal como é a homofobia. Mas é intrigante o erro do radar homofóbico dos agressores, o que sugere haver um equívoco de ponto de partida: eles parecem não ter sido capazes de identificar sinais corporais de algo tão fundamental quanto o amor paterno. Mesmo que não sejam ainda pais, não conseguiram se deslocar para o lugar de filhos que já foram ou ainda são. Aos guardiões da moral heterossexual, esse é um erro de diagnóstico que denuncia uma perturbação simbólica ainda mais fundamental.
Se minha hipótese for razoável, a mediação homofóbica na relação entre pais e filhos ou entre homens que se relacionam por vínculos de amizade ou convivência perpassa a socialização de gênero dos meninos. Os homens seriam treinados para evitar expressões de afeto e carinho por outros homens. Aqui volto à imagem da Índia para lembrar que o desejo de aproximação física entre homens não está inscrito nos corpos sexuados, mas é compartilhado pela cultura em que os homens vivem. Os homófobos se formam em casa, na rua, na escola. Em todos os espaços em que a fantasia homofóbica mediar a relação entre os corpos e afetos dos homens, a violência e a injúria contra os fora da lei heterossexual irão crescer.
DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
PS: Sinceramente... que texto perfeito ! Humilhou... rs
Mas falando sério... é um assunto que me dá nojo. Dá vontade de fazer justiça com as próprias mãos, tipo olho por olho, dente por dente. Nessas horas a lei do talião da época romana cairia muito bem. Aliás, parece que regredimos, pois a sexualidade era tratada com naturalidade na Grécia antiga, por exemplo.
Lamentável!
8 pitacos nesse post.:
Excelente artigo!
Privámo-nos da liberdade de viver os afectos quando os passámos a catalogar. Somos uma sociedade dogmática, preconceituosa e carente. Tristemente carente. Os exemplos de uma deficiente Educação são omnipresentes e gritantes na sua rudeza de expressão.
Quando assisti a matéria expondo essa agressão entre pai e filho eu fiquei pasmo...
Caraca, nem tudo é culpa dos pais, mas será que os agressores nunca receberam carinho do pai?
São seres que vivem a vida sem afeto, sem carinho, não tem amor próprio....
São seres que não conformam com afeto familiar,são seres que a própria familia o desprezam...
A impunidade nos causa medo, por saberem que seres como estes, estarão por aí destruindo laços familiares...
esplêndida contextualização ...
Esta professora foi esplendida em seu texto, parabéns pela iniciativa de dividir conosco.
Um abraço!!!
Oi querido Rafa
Essa última palavra traduz tudo né?
Lamentável.
Passando para deixar um beijo e desejar uma semana maravilhosa, cheia de paz, amor e realizações.
Ani
http://cristalssp.blogspot.com
Passando para deixar um beijo e desejar uma semana maravilhosa, cheia de paz, amor e realizações.
Ani
http://cristalssp.blogspot.com
Oi,Rapha!Pois é dizem que o ser humano está evoluindo, eu a cada dia mais duvido dessa teoria,é acho que não falta muito para voltar a lei do talião não, o mundo tá um caos...
Um ótimo começo de semana!
Beijosss
Que bom que gostaram da matéria, pessoal. O texto é brilhante.
@Mandrag estreando nos coments... seja bem vindo.
E quanto aos santos de casa, sintam-se à vontade...
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